terça-feira, 21 de junho de 2016

Maracatu Real da Várzea

Neste trabalho, intencionamos apontar uma marcante forma de expressão do Bairro da Várzea: o seu grupo de percussão de maracatu, fundado Maracatu Várzea do Capibaribe. Não se trata de imobilizar o produto, mas de preservar, de registrar o processo, o fazer, a técnica. 

Identificação do Patrimônio
   Nome:
Fundado Maracatu Várzea do Capibaribe, o grupo passa por disputas judiciais em torno de seu nome, devido a uma dissidência interna. O poder judiciário analisa pedidos de patente em relação a tal denominação. Enquanto a decisão não é homologada, o grupo se denomina Maracatu Real da Várzea, ou Maracatu Real Várzea do Capibaribe.
          
   O que é:
O Maracatu Real Várzea do Capibaribe é um grupo de percussão de Maracatu de Baque Virado, localizado no bairro da Várzea, no município do Recife. O grupo não tem a intenção de se efetivar enquanto “nação” de maracatu, pois alegam que a composição da equipe é muito plural e diversificada, portanto, não pretendem sem comprometer ou obter ligação com nenhum terreiro em específico, mesmo que alguns do grupo sejam integrantes das religiões afrobrasileiras.
   Onde está:
Os ensaios do grupo de Maracatu ocorrem na Praça da Várzea, o local mais explorado e vivenciado do bairro. Tal praça conta com atividades desde as horas iniciais do dia adentrando até a madrugada. É dotada de quadra poliesportiva, onde treinam times organizados e também os chamados “peladeiros”, Academia da Cidade, Academia do Recife, Pista de Cooper, utilizada também para patins, bicicletas e afins, Parque com escorregos e balanços, e um coreto utilizado pelos grupos políticos e culturais da comunidade. 

    Períodos importantes:
- Festa de Aniversário: Todo ano, no mês de dezembro, em datas variáveis, mas em geral em um feriado, o Maracatu Real Várzea do Capibaribe promove sua festa de aniversário, na Praça da Várzea. Na última ocasião, o evento contou com dois palcos para apresentações culturais do próprio grupo e de convidados, além de uma tenda eletrônica. A comunidade participa em peso desse evento. Para o ano de 2016, a equipe planeja uma “Rave ou Virada Cultural”, um evento que dure o final de semana inteiro (de sexta a domingo).
- Festival de Inverno da Várzea (FIV): Entre agosto e setembro, a comunidade encampa do FIV, parafraseando o reconhecido Festival de Inverno de Garanhuns, o FIG. É de praxe a apresentação do Maracatu Real da Várzea neste evento.
- Carnaval: Desde que se assumiu na cidade o modelo de pólos descentralizados para o carnaval, a Várzea abriga um dos mais importantes. Em geral, a Praça recebe dois ou três palcos e a presença do toque do Maracatu Várzea do Capibaribe é garantida. Sem dúvidas, um dos períodos mais importantes do ano para o grupo.
- Ensaios: A preparação para todos os eventos anuais se dá através das oficinas e ensaios que ocorrem todo sábado, das 17h às 20h, na Praça da Várzea. Os ensaios são abertos à visitação e participação.
- Demais eventos: O Maracatu também participa de eventos fora do calendário oficial de festas, em geral quando são convidados a tocar em festas e encontros no Recife e em diversas cidades.

    História:
Abissal se aproximou do universo do maracatu quando era graduando em Engenharia de Pesca na UFRPE, e participante do Coral da Universidade. Um primo, que era integrante do famoso Maracatu Nação Pernambuco, lhe entregou uma fita VHS para que pudesse conhecer como funcionava um ensaio deste grupo. Ao contrário do que se pensa, não foi neste momento que despertou a paixão por esta cultura em Abissal, pois a filmagem e o áudio da fita eram de péssima qualidade, levando-o a crer que esta forma de expressão não tinha uma estética muito apurada: “achei um horror”, nas palavras do próprio. Pouco depois um amigo muito próximo o faz um convite tentador: participar como cantor na gravação do chamado “Primeiro LP de Maracatu do Mundo”, promovido por Bernardino José, também do Nação Pernambuco. Apesar de não ter tomado gosto por esta expressão, o cantor de coral Abissal viu aí uma ótima oportunidade para cantar solo e ao microfone pela primeira vez. Foi com este interesse que ele aceitou o convite, e daí não saiu mais deste mundo. Resolveu fundar seu próprio maracatu depois de enxergar certa mercantilização e centralização nas decisões que deveriam ser coletivas dentro do Nação Pernambuco, perdeu-se o sentimento de grupo quando atingiu-se a fama, segundo conta o nosso entrevistado.
Depois desta decisão, funda o grupo “A Cabra Alada” na intenção de conhecer mais a cultura popular, para além do maracatu. Deixou o grupo pelo mesmo motivo que saiu do Nação Pernambuco, e fundou junto com seu primo o “Caboclos Envenenados”, para cantar seu maracatu. Mas para Abissal, apresentar seu canto com o “Caboclos” não era suficiente. O ideal era criar realmente um grupo de percussão, no bairro da Várzea, para ensaiarem junto à comunidade e se apresentarem no Recife e em outras cidades. Em dezembro de 1998 nasce o Maracatu Várzea do Capibaribe, denominação inspirada em uma Igreja Batista homônima, e que desde o ano 2000 ensaia e se apresenta neste bairro.
Carregou em si o que considera o grande avanço do Nação Pernambuco: a certa leveza nas músicas e no vestuário. Segundo ele, o Maracatu que canta incessantemente loas de poucas estrofes, que focam o tempo inteiro na desgraça da escravidão, no peso do chicote nas costas do escravizado, está preso num passado que é importante se rememorar, mas não consegue acompanhar o mundo moderno. Em sua opinião, torna-se enfadonho assistir uma apresentação de um grupo dotado de apenas um ou dois toques, com loas muito curtas e com peso simbólico tão pesado.
O seu maracatu não esquece as origens, mantém instrumentos tradicionais, mas também incorpora novos. Canta loas tradicionais, mas também compõe novas. Mantém roupas clássicas, mas veste-se de forma mais leve. Utiliza-se de toques consagrados, mas o tempo todo busca criar novos.
O grupo começou seus ensaios na Escola de Artes João Pernambuco, mas a gestão da instituição começou a impor uma série de taxas e condições para que se mantivessem lá os ensaios.  A partir deste impasse, resolveram se mostrar de fato para a população, tocando na Praça da Várzea, o centro deste bairro. Começaram suas atividades com roupas emprestadas, de presente ganharam seus primeiros instrumentos de um maracatu da cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, após conferirem uma capacitação à tal agremiação.
Em 2012, este primo de Abissal resolve sair da associação, e carrega consigo a maioria dos instrumentos musicais e vestuário (que ficavam alocados em sua casa por que ele era o único do grupo que possuía um carro para transportar tais objetos). Além disso, se achou no direito de usar o nome “Maracatu Várzea do Capibaribe” em seu novo grupo. Entrou com pedido de registro de patente na justiça, e desde então Abissal tenta recorrer para manter a denominação em seu grupo de origem.
Na intenção de manter seu maracatu vivo, Abissal e seu grupo, de forma democrática, com discussões pormenorizadas, estão em processo de construção de um regimento interno e um estatuto, buscam também a oficialização de um CNPJ, a fim de criar uma estrutura burocrática e jurídica que dê sustentação à agremiação. Na medida do possível, este processo de reestruturação do Várzea tem como horizonte a obtenção de uma sede e de veículos próprios, já que atualmente todo o material da equipe fica armazenado dentro da Academia da Cidade, na Praça da Várzea, além de serem dependentes de terceiros para o deslocamento dos participantes.

    Significados:
Tocar maracatu não é simplesmente fazer música, é rememorar, é viver um passado que nos legou permanências das mais diversas. Ritmo tipicamente pernambucano, herança de uma história de escravização de diversos povos, o maracatu é até hoje uma das expressões culturais que nos representa melhor.
É nesse sentido que o Várzea do Capibaribe enxerga sua ação. O Maracatu é patrimônio, o Várzea é posse de seu bairro, portanto, aglutinar pessoas ao se redor, criar laços identitários, dar sentido à suas práticas são eixos fundamentais desta atuação. Ao promoverem oficinas abertas e gratuitas, conseguem aproximar à cultura popular pessoas de todos os gêneros, classes, idades e credos.
Descrição
     Etapas e Pessoas envolvidas:
Os ensaios iniciam-se às 17h com a oficina de percussão gratuita e aberta ao público, independentemente da idade. Após 90 minutos de oficina, inicia-se o ensaio da agremiação, com também 90 minutos de duração. Diferentemente dos Maracatus-Nação, que são envolvidos numa ritualística específica, no Várzea do Capibaribe esta característica não é marcante, já que se constituem como um grupo de percussão.         
Como os ensaios se dão nos fins de semana, a participação dos indivíduos nem sempre é constante, entretanto, em números gerais, o Maracatu Real da Várzea conta atualmente com 150 membros, na oficina e no grupo efetivo. 
 Como ressaltado anteriormente, estas pessoas em sua maioria são moradores do próprio bairro, mas há indivíduos que residem em bairros relativamente distantes e mesmo assim são figuras constantes nos ensaios e apresentações. Pessoas de todas as crenças, idades, classes se unem no Várzea.
Além de trabalhar na própria comunidade, o Maracatu vem empreendendo um trabalho social para além de seu território. Próximo ao carnaval, fazem oficinas de batuque na comunidade do Coque, no NEIMFA, e desde o mês de abril deste ano comparecem semanalmente à FUNASE, na intenção de ensinar à menores infratores a cultura do maracatu.
      
    Expressões orais:
O maracatu entoa as chamadas “loas”. Apesar de não serem um “maracatu de terreiro”, e serem um grupo formado por indivíduos de diversas crenças religiosas, entendem que esta a tradição em si é afrobrasileira, e sabendo disso dedicam parte de suas loas aos orixás, especialmente Oxum, como forma de respeito, não como ritualismo. Em geral essas músicas retratam a beleza do maracatu, da cultura popular, a resistência das populações afrodescendentes e a riqueza do nosso estado.
    Objetos importantes:
- Caixa de guerra, apito, tarol: comandam o ritmo do batuque
- Tambores: divididos em “marcante” (alfaias), “meião” e “viradores”
- Gonguê: instrumento formado por um sino
- Ganzá: espécie de chocalho
     Estrutura e recursos necessários:
O Maracatu sustenta suas atividades com dinheiro arrecadado em suas apresentações, os cachês, rifas, bazares e doações. Mas, segundo o Mestre Abissal, tais recursos não são suficientes para dar conta de todas as demandas que um grupo deste porte exige, portanto, como pós-doutorando, cede dinheiro da própria bolsa de pesquisa para sustentar e manter funcionando o Maracatu Real da Várzea. O grupo passou por uma série de dificuldades depois de uma dissidência interna e perdeu boa parte de seus instrumentos musicais e vestuário, e desde 2012 vem tentando se reerguer da forma que pode. Boa parte das alfaias do grupo foram doadas por uma empresária que é participante deste maracatu e resolveu fundar o seu próprio no município de Vitória de Santo Antão. Ela pediu que o Várzea do Capibaribe apadrinhasse seu novo grupo, e como forma de gratidão efetuou esta doação de instrumentos.
Já foi sugerido à Abissal que cobrasse uma quantia simbólica mensal para os participantes, a fim de eles próprios ajudarem no sustento da causa. A idéia foi rejeitada, porque para o maracatuzeiro, tal prática poderia afugentar pessoas com ligações sinceras, mas que não tivessem condições de contribuir monetariamente. Evitar a mercantilização do maracatu é a justificativa.  É importante anotar que o maracatu não dispõe de sede própria. Os instrumentos ficam alocados na Academia da Cidade, e o transporte deve ser garantido pelo contratante das apresentações.
    Avaliação e recomendações:
É com muito esforço e dedicação que Abissal e seu grupo vêm empreendendo a reconstrução do Maracatu Várzea do Capibaribe, ou Real da Várzea, diante da maior dificuldade na qual se depararam desde a sua fundação: a dissidência de seu primo e esposa, que levaram consigo quase todo o material (e até o nome) que a agremiação dispunha. Desde 2012 esta nova fase do Maracatu vem sendo baseada na tomada coletiva de decisões e na ajuda mútua para reerguer e reequipar o coletivo. Com uma juventude atuante e disposta, este Maracatu tão íntimo da Várzea tem tudo para continuar sendo por muito tempo uma importante referência cultural para seu bairro e para a cidade.
O maracatu é uma tradição que resiste ao longo dos séculos. Já foi condenada ao desaparecimento, mas sempre ganha um impulso para se reinventar, seja pela atuação de mediadores culturais na primeira metade do século XX, seja por movimentos musicais ecléticos como o MangueBeat em fins do século XX, o importante é se reinventar para permanecer atuante. É com essa concepção que Abissal traz recomendações para uma atuação mais persistente do maracatu: não esquecer as tradições, mas também não parar no tempo. “Modernizar o passado é uma evolução musical”, disse Chico Sciense e parafraseia José Lúcio Bezerra Júnior. Não é esquecer os velhos toques e loas, mas criar novos, não é esquecer o passado escravista, mas alargar o teor das composições, não é deixar de lado o vestuário tradicional, mas fazer roupas mais leves e confortáveis para os participantes, é cantar o maracatu em todo lugar, divulgar a cultura popular, não fechá-lo em si mesmo. Acompanhar as mudanças do tempo para continuar vivo.

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